A iniciativa privada no saneamento básico já estava presente em 389 municípios ao final do ano de 2019, de acordo com o “Panorama 2021 da Iniciativa Privada no Saneamento”, publicado pela Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon). No entanto, com a aprovação do novo Marco Legal do Saneamento Básico, em junho do ano passado, a tendência é que o setor ganhe ainda mais espaço junto às prefeituras.
Estados como o Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul e Alagoas, por exemplo, puxaram o movimento com a realização de concessões e parcerias público-privadas (PPPs) para o saneamento básico. Nesta quinta-feira (2) será a vez de o Amapá promover leilão para privatizar os serviços de água e esgoto nos 16 municípios do estado, em uma operação que deve proporcionar R$ 984 milhões em investimentos nos primeiros cinco anos, montante mais de 10 vezes superior à média atual, de acordo com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Embora atenda a apenas 7% dos municípios brasileiros, a participação privada no saneamento é responsável por 33% de todo o investimento no setor, que é de R$ 15,6 bilhões. Entre 2018 e 2019, os aportes privados em saneamento saltaram de R$ 2,5 bilhões para R$ 4,8 bilhões. Segundo Percy Soares Neto, diretor executivo da Abcon, a explosão de investimentos privados nos serviços de água e esgoto está só no começo.
“A iniciativa privada já está mais presente. Os leilões agregaram e a gente vai quase dobrar de tamanho em dois anos. Quando contabilizar 2020 e 2021, quando entrar a operação da Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro) e Mato Grosso do Sul, esse negócio vai explodir, vai mais do que dobrar o número de municípios atendidos. O mercado está aquecido”, avalia.
Saneamento antes do marco regulatório
O incremento do capital privado em saneamento básico é apenas um dos efeitos do novo Marco Legal. Para entender o que mudou com a aprovação da Lei nº 14.026 é preciso voltar no tempo e conhecer como o setor era estruturado. Percy conta que o Brasil lançou um Plano Nacional de Saneamento Básico (Planasa) na década de 1970. “O que o Governo Federal disse naquela época: ‘olha, só vou dar dinheiro para saneamento para os estados que criarem companhias estaduais de saneamento e essas companhias prestarem o serviço. A partir daí, a maior parte do mercado de saneamento ficou dominado pelas companhias estaduais. Hoje, elas ainda têm dois terços desse mercado”, diz.
Os municípios que não queriam aderir a esse formato, casos de Campinas (SP) e Porto Alegre (RS), por exemplo, prestavam o serviço à população de maneira autônoma. Nessa primeira organização, a iniciativa privada ficou relegada a um segundo plano. “Não havia incentivo. Havia um desincentivo e uma pressão política contrária e violenta das companhias estaduais”, afirma Percy.
O Planasa durou 23 anos até ser extinto pelo governo do ex-presidente da República Fernando Collor. A política pública para o setor, segundo o especialista, viu-se num vácuo, e cada companhia se virou como pôde até a criação do primeiro marco regulatório do saneamento básico do País, instituído pela Lei nº 11.445 de 2007.
Naquele ano, apenas 42% dos brasileiros tinham acesso à coleta de esgoto e 80,9% recebiam água tratada em suas casas. Numa tentativa de reorganizar o saneamento básico no Brasil, o Governo Federal, por meio da lei, passou a exigir que os municípios desenvolvessem seus planos de saneamento básico e criou a regulação do setor.
Posteriormente, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que cabe aos municípios a titularidade dos serviços de saneamento básico. Ou seja, são responsabilidade da prefeitura. “A lei foi considerada um avanço, até porque não havia nenhuma regra nacional para saneamento, então ela foi muito importante para dar um pouco mais de estabilidade e segurança jurídica para o setor de saneamento. Essa lei de 2007 permitiu avanço um pouco mais expressivo até do setor privado, que é predominantemente operado por empresas públicas”, explica Édison Carlos, presidente executivo do Instituto Trata Brasil.
Para Percy, o primeiro marco regulatório não vingou, entre outras coisas, por um motivo: uma contradição do próprio governo, à época chefiado pelo ex-presidente Lula. Se de um lado, a lei abria espaço para a participação de investimentos privados, por outro, o Executivo, via Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), dava um sinal diferente.
“Qual era o grande apelo para um município chamar um parceiro privado para fazer os investimentos? Era justamente trazer dinheiro para o saneamento. Mas o governo disse: ‘eu vou criar um marco legal para melhorar o ambiente institucional para trazer o investimento privado. Por outro lado, eu crio um programa que dá dinheiro a fundo perdido para o prefeito’,” relembra.
Com os recursos que vinham do PAC, Percy diz que muitos prefeitos só se atentaram às obras em si, e se esqueceram de outras melhorias. “O grande inibidor da participação privada foi o dinheiro a fundo perdido para obra, que levou muita gente a uma ilusão de que ‘eu construir a obra vai resolver o problema do saneamento’, e a não percepção de que o saneamento é um serviço e, como serviço, a obra é uma parte fundamental, mas ela não extingue em si a prestação de serviço. Vem um monte de outras coisas que precisam ser feitas no setor de saneamento para prestar um bom serviço para a população”, defende.
Marco
Entre 2007 e 2018 – ano em que os debates em torno de um novo marco legal para o saneamento começaram –, Édison diz que o Brasil avançou pouco no abastecimento de água e na coleta e tratamento de esgoto. Foi a partir destes desafios que surgiram o novo Marco Legal do Saneamento Básico.
O texto prevê que todos os contratos de saneamento básico no País, sejam eles de execução do poder público ou privado, devem se comprometer a universalizar o serviço. Até 2033, 99% da população deve ter fornecimento de água potável e 90% de coleta e tratamento de esgoto.
Segundo levantamento mais recente do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), quase 100 milhões de brasileiros (46%) não têm acesso à coleta de esgoto. Outros 16% não recebem água tratada, o equivalente a 35 milhões de pessoas.
Especialistas apontam que uma das melhorias da nova legislação é a competitividade, que será consequência da entrada de empresas privadas no setor e, sobretudo, das metas em vigor, o que pode trazer mais eficiência. Confira aqui qual a cobertura de água e esgoto em seu município: https://brasil61.com/widgets/mapa/58
Contratos
Com o marco, os municípios ganham mais autonomia e, ao mesmo tempo, responsabilidade, diz Percy. O prefeito pode decidir, como já era possível, não conceder o serviço a ninguém, seja empresa pública ou privada. “O que o marco diz: no momento que o prefeito quiser entregar esse serviço para um terceiro, seja ele qual for, precisa fazer uma licitação. É o pilar da competição. Não adianta mais a pressão política do governador do estado, por exemplo: ‘olha prefeito, eu faço um hospital na sua região, mas tu assina um contrato com a minha companhia’.”
As regras não valem apenas para os contratos que foram firmados depois da sanção do novo Marco Legal. Dessa forma, os acordos que estavam em vigor precisam se ajustar para atender às metas de universalização previstas. “Os contratos precisam ser adequados às metas. Mesmo que o contrato seja até 2050, todo mundo tem que ter 99% de água e 90% de esgoto. Se o contrato não tinha essa meta, ele tem que dar um jeito de botar”, completa.
Além disso, todas as empresas que prestam serviços de água e esgoto têm até 31 de dezembro de 2021 para comprovar que terão capacidade econômico-financeira para universalizar os serviços até 2033. “Quem quiser permanecer ou entrar no setor de saneamento já sabe que vai ter que trabalhar com esse universo de tempo. Não adianta reclamar, dizer que não tem dinheiro. É isso ou sai do setor”, crava Édison, do Trata Brasil.
Os gestores também devem se atentar aos contratos que irão vencer. A partir de agora, não será permitido renová-los. A regra já é conhecida: licitação. O mesmo vale para os casos em que as companhias não comprovarem capacidade de investimento.
Os chamados contratos de programa, em que as cidades firmavam acordos diretamente com as companhias estaduais, sem a mínima concorrência, foram extintos pelo marco. Nestes casos, os prefeitos podem renová-los por mais 30 anos, mas os acordos estão sujeitos às metas de universalização e à comprovação de viabilidade econômico-financeira, assim como todos os outros.
Blocos regionais
A prestação regionalizada dos serviços é tida como o gatilho mais importante para garantir a universalização da água e do esgoto dentro do prazo. O mecanismo delega aos governadores a responsabilidade de organizar os municípios em blocos regionais, que incluem cidades mais e menos atraentes. Dessa forma, as empresas públicas ou privadas terão que fornecer o saneamento básico para todas as cidades.
Percy Soares explica como funcionaria. “Essa ideia não deixa ninguém de fora, por isso que ela é boa. Por exemplo: me interessa operar na zona sul do Rio de Janeiro. ‘Ó meu amigo, tu vai operar lá, tu vai levar água para Botafogo, Copacabana, um monte de prédio, um monte de conta d’água, vai fazer um dinheirão ali, né?. Mas tu tem que atender o cara de São João do Meriti, porque ele também precisa de saneamento’.”
A adesão à regionalização proposta pelos governadores não é obrigatória, exceto em cidades que compõem regiões metropolitanas. Porém, os prefeitos continuam obrigados a cumprir todas as metas.
Desafio
Segundo Édison, os gestores devem se envolver, ao máximo, com o processo de regionalização em que foram inseridos. “A responsabilidade final é do gestor, titular do saneamento. Os prefeitos precisam ver quais são as obrigações dentro do novo marco legal, se o estado fez os blocos regionais e onde ele acabou inserindo o seu município. Além disso, precisa debater isso com os prefeitos do mesmo bloco para ver se é melhor realizar uma PPP, uma concessão, continuar apostando na empresa estadual (caso preste um bom serviço) ou se eles tendem a manter o mesmo serviço municipal”, detalha.
Regulação
De acordo com o novo Marco Legal do Saneamento Básico, a regulação do setor é responsabilidade da Agência Nacional de Águas (ANA). Para os especialistas, o órgão vai ajudar a uniformizar o cenário. “A ANA fará diretrizes regulatórias para o setor, criando uma harmonização dessas regras para que eu não tenha uma agência no interior de São Paulo exigindo um tipo de regulação e uma agência no interior de Santa Catarina exigindo outra”, explica Percy.
Nesta quinta-feira (2), a agência vai realizar a primeira audiência pública pós-marco legal. O evento tem o objetivo de receber sugestões do setor e da sociedade para elaborar as regras que vão orientar a adaptação dos contratos de programa em vigor.
De acordo com o SNIS, esse tipo de contrato abrange 69% das prestadoras dos serviços de saneamento que são sociedades de economia mista com a Administração Pública, as companhias estaduais. A população atendida pelas prestadoras com contratos de programa até então chegava a cerca de 155 milhões de brasileiros ou cerca de 70% da população.
Fonte: Brasil 61