Nota evidencia prejuízo ao debate democrático em razão da urgência na votação é prejuízos à tradição alimentar e à autonomia dessas populações, desrespeitando sua cultura
O Ministério Público Federal (MPF) apontou, em nota emitida nesta terça-feira (23), os potenciais impactos negativos causados ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e para os povos indígenas e comunidades tradicionais caso sejam aprovados dois projetos de lei, propostos pelos deputados federais Vitor Hugo (PSL) e Afonso Hamm (PP), com o objetivo de alterar a legislação que rege a alimentação escolar, a Lei nº 11.947/2009. O documento é de autoria do Grupo de Trabalho (GT) Intercameral Agroecologia do MPF, formado por membros vinculados às Câmaras Criminal (2CCR), de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural (4CCR), de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais (6CCR) e da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC).
As alterações propostas pelos deputados nos projetos de lei nº 3.292/2020 e de nº 4.195/2012, referentes ao cardápio escolar, incluem a determinação de que, no mínimo, 40% do recurso repassado pelo PNAE e utilizado para a aquisição de leite, sejam destinados a aquisição da forma fluida do produto junto a laticínios locais devidamente registrados no Serviço de Inspeção Federal, Estadual ou Municipal e a oferta de carne suína uma vez por semana nas escolas.
Na nota, o MPF ressalta que “ao criar cota específica para a aquisição de um determinado tipo de alimento, abre-se precedente perigoso para uma série de possíveis reservas de mercado, que respondem aos interesses dos mais diversos tipos de lobby”.
Ainda de acordo com o MPF, as proposições contrariam a própria Lei 11.947/2009, que estabelece, em seu artigo 12, que a elaboração dos cardápios da alimentação escolar devem respeitar “as referências nutricionais, os hábitos alimentares, a cultura e a tradição alimentar da localidade, pautando-se na sustentabilidade e diversificação agrícola da região, na alimentação saudável e adequada”. Nesse sentido, segundo a nota, as novas exigências propostas não se encaixam na realidade do país, que possui grupos étnicos, geografia e clima distintos.
“Com a eventual efetivação de tal alteração, viola-se inclusive a autonomia assegurada na Constituição Federal e na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho dos diversos povos indígenas e comunidades tradicionais brasileiros”, reforça o documento.
Retrocesso e prejuízos culturais – A nota técnica também destaca que o projeto de lei nº 3292/2020 representa um retrocesso no que se refere à garantia de direitos dos povos tradicionais, em especial sobre a soberania e segurança alimentar, nutricional e o acesso aos alimentos de sua própria cultura ao propor a retirada, no processo de aquisição de alimentos, da prioridade para comunidades tradicionais indígenas e de remanescentes de quilombos.
O MPF enfatiza que esses povos já possuem dificuldades históricas de acesso à documentação regular, ao crédito e assistência técnica agrícola diferenciada e a proposta dificulta ainda mais o acesso aos mercados, pois os obriga a “disputar com produtores já mais estruturados, excluindo-os do processo de fornecimento ao PNAE, em suas localidades, acentuando ainda mais a situação de vulnerabilidade destas populações”.
“A urgência para votação desta matéria coloca em risco o debate democrático e o adequado andamento do PNAE, pois tais propostas de alteração devem ser amplamente debatidas com o envolvimento de diferentes atores interessados no tema, de forma a evitar retrocessos, perdas, riscos e a violação dos direitos já conquistados”, afirma o MPF.
Também já se posicionaram contrárias aos projetos de lei diversas instituições vinculadas ao tema da alimentação e soberania e segurança alimentar e nutricional, como Comitê Gestor do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, Associação Brasileira de Nutrição (Asbran), ACT Promoção da Saúde, Conselho Federal de Nutricionistas (CFN), Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Federação Nacional dos Nutricionistas (FNN), Fian Brasil – Organização pela Alimentação e pela Nutrição Adequadas e Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
Sobre o PNAE – Referência mundial, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) oferece alimentação escolar e ações de educação alimentar e nutricional a estudantes de todas as etapas da educação básica pública. Atualmente, atende mais de 4140 milhões de estudantes em todo o país, com um orçamento de aproximadamente R$ 4 bilhões de reais.