Ela surgiu na Santa Ifigênia, nos cruzamentos da rua dos Gusmões com as pequenas ruas dos Protestantes e do Triunfo, logo atrás da estação ferroviária da Luz, no centro de São Paulo.
E, há quase 30 anos, migra de um quarteirão para o outro, em modo constante, se esparramando pelos bairros vizinhos: Campos Elíseos adentro ou em direção à República, chegando até Santa Cecília, e depois de volta.
A itinerância da maior cena aberta de uso de crack e outras drogas do país, batizada de cracolândia nos anos 1990, é fruto ora de um jogo de esconde-esconde, a partir do mando do crime organizado, ora do empurra-empurra das operações policiais que incidem sobre ela, onde quer que esteja.
Quando o vetor do deslocamento do fluxo (o burburinho de comércio e uso da droga) é o tráfico, no melhor interesse de seus negócios, o movimento costuma ocorrer em bloco, com a transposição orquestrada de barracas e dos quase 2.000 usuários e dependentes químicos que frequentam o local.
Já quando a mudança é por causa de uma das muitas operações das forças de segurança, o efeito é de dispersão, com impacto imediato e pouco efeito sobre a dinâmica local, mesmo no curto prazo.
Em pouco tempo, os traficantes presos são substituídos, a mercadoria reaparece e a cena se reorganiza em outro lugar, num eterno retorno.
Especialistas apontam que essa história se repete por causa da falta de investimento em políticas públicas voltadas para cuidar, ao mesmo tempo, das pessoas e do território.
Fala-se da falta de atenção adequada à saúde e da importância dos princípios da redução de danos, que trata do que é possível tratar, sem exigir abstinência. Fala-se da falta de políticas consistentes de moradia, trabalho e renda e da ausência de um projeto urbanístico integrado para uma área considerada como das mais deterioradas do centro histórico paulistano.
O que não falta é operação policial, ainda que a polícia não tenha como resolver sozinha o problema.
A complexidade de questões que operam nesse quadrilátero paulistano remonta à história da cidade, de grupos vistos como indesejáveis e do abandono social e urbanístico que marcou o crescimento explosivo da megalópole brasileira.
Começa quando a aristocracia cafeeira e a nova burguesia industrial abandonaram os bairros de Campos Elíseos e da República rumo à Higienópolis e à avenida Paulista, nos anos 1930.
“As proximidades das linhas férreas começaram a se encortiçar”, conta o urbanista Nabil Bonduki, professor da FAU (Faculdade de Arquitetura de Urbanismo) da USP e colunista da Folha de S.Paulo. “E Adhemar de Barros, interventor do Estado Novo em São Paulo, escolheu o Bom Retiro, bairro vizinho, para criar uma Zona de Meretrício.”
A ideia era apartar e esconder a prostituição dos olhos da alta sociedade paulistana, concentrando-a para melhor controlá-la. Mas, em 1953, às vésperas do quarto centenário da cidade, os apelos morais contrários à existência da zona de prostituição fizeram o governo arquitetar uma operação que pretendia varrer os prostíbulos da cidade –e qualquer semelhança com as intenções atuais do poder público não é mera coincidência.
O fechamento da zona do Bom Retiro pelo aparelho repressivo do Estado só fez as trabalhadoras do sexo migrarem para a região onde hoje gravita a cracolândia.
Atrás delas vieram os bares, hotéis, restaurantes, casas noturnas, clubes de strip-tease e cinemas que renderam à região o apelido de Boca do Lixo.
Associada à cultura marginal, à boemia e a uma vida bandida, a Boca do Lixo era citada com frequência nas páginas policiais dos diários de notícias, o que manteve a região segregada pelo medo, desvalorizada para moradia e ainda mais deteriorada pela chegada do terminal rodoviário da Luz.
Instalada em frente à praça Júlio Prestes em 1961, a rodoviária aumentou o trânsito e transformou seu entorno num grande estacionamento de ônibus. Também fez proliferar os pequenos hotéis populares e as pensões que abrigavam a enxurrada de migrantes que chegavam à capital.
Dez anos depois, a inauguração do Minhocão, a poucos quarteirões de distância, aumentou a concentração de pessoas em situação de rua que buscavam abrigo sob a enorme estrutura de concreto.
Em 1982, a desativação do terminal rodoviário da Luz, sem nenhum projeto de requalificação da região, jogou todo aquele pedaço da cidade num limbo.
Em 1987, o então prefeito Jânio Quadros tentou emplacar um projeto que implicaria a derrubada de quarteirões inteiros, mas enfrentou resistência de movimentos de preservação histórica. E a região seguiu sem perspectivas.
Quando o crack chegou a São Paulo, rapidamente aquele pedaço do centro da cidade se mostrou ideal para abrigar uma cena aberta de uso.
Entre 1995 e 2002, o pânico social causado pelas informações divulgadas sobre o crack, associado a uma suposta epidemia e a um perfil empobrecido de grande parte dos usuários, pautou políticas baseadas na repressão. Foram instaladas delegacias móveis e aumentou a presença policial naquele quadrilátero.
A primeira de uma sequência de grandes operações policiais carregava o nome de “Tolerância Zero”. De tão numerosas, elas chegaram a um pico de 1 operação a cada 3 dias durante o ano de 1999.
A estratégia de uma abordagem majoritariamente policial foi temporariamente descontinuada a partir do final de 2001, quando cinco policiais civis foram presos sob acusação de comandar o tráfico de drogas na cracolândia.
Naquela época, os governos tucanos investiram em projetos culturais de grande porte para tentar revitalizar a região e valorizar os imóveis. Reformaram a Pinacoteca do Estado e criaram a Sala São Paulo.
“Existiu um esforço do governo de criar um polo cultural na região”, aponta Bonduki. “Mas projeto cultural não se esparramou pelo seu entorno, como se esperava.”
Apesar dessa constatação, a criação de grandes equipamentos na região seguiu, com a instalação do Museu da Língua Portuguesa, em 2006, acompanhada de uma proposta de revitalização urbanística batizada de Nova Luz, que oferecia isenção fiscal a empresas que se instalassem na região.
Em 2009, o então governador tucano José Serra (PSDB) investiu mais de R$ 100 milhões num complexo cultural com teatros e escola de dança que ocuparia o terreno da antiga rodoviária, assinado por um estrelado escritório internacional.
A escala do investimento urbanístico parece ter sido acompanhada pelo campo da repressão policial. Em 2012, a gigantesca Operação Sufoco fez fama sob o codinome “dor e sofrimento”.
“A PM entrou com cavalo, com moto, atropelando as pessoas. Era algo de uma violência nunca vista em São Paulo”, afirma Arthur Pinto Filho, promotor da área de saúde pública. “A ideia era causar dor e sofrimento para forçar as pessoas a procurar tratamento. E isso resolveria o problema da cracolândia.”
Àquela altura, a cena aberta de uso de crack chegava a reunir 2.000 pessoas durante as noites e aos finais de semana, com pouca ou nenhuma oferta de assistência social e de tratamento para seus frequentadores.
Segundo Maria Angélica Comis, coordenadora de advocacy do Centro de Convivência É de Lei -organização que atua na região central desde 2002-, o que ocorria na prática era uma tentativa de internação involuntária das pessoas que frequentavam o fluxo.
“A polícia e a GCM [Guarda Civil Metropolitana] ficaram andando atrás dos usuários, que não tinham a possibilidade de se sentar, algo muito parecido com o que aconteceu agora, quando houve dispersão dos usuários que se concentraram na praça Princesa Isabel.”
O promotor Pinto Filho conta que, diante da violência, as pessoas que apanhavam na rua começaram a procurar a prefeitura para que fossem encaminhadas para comunidades terapêuticas.
“Só que isso tem alguma chance de funcionar apenas quando há uma porta de saída muito bem estruturada: com programas de educação, trabalho, renda e moradia”, aponta ele. “Como não havia nada disso, as pessoas rapidamente voltavam para a região central e para o fluxo”, afirma.
Pesquisa Datafolha da época apontou que 8 em cada 10 paulistanos concordavam com a ação da polícia.
A Justiça acabou proibindo a abordagem policial a pessoas em situação de rua na cracolândia. E a cena aberta de uso se instalou de maneira crônica no cruzamento das ruas Cleveland e Helvétia.
Novas estratégias A estratégia para lidar com a questão da saúde mudou em 2013, quando os profissionais passaram a entrar no fluxo para falar com as pessoas.
A gestão do governador Geraldo Alckmin, então tucano, substituiu o complexo cultural milionário de seu antecessor por um projeto de habitação popular no mesmo terreno e criou o programa Recomeço, que preconiza o tratamento de dependentes isolados em hospitais e comunidades terapêuticas.
Em 2014, o programa De Braços Abertos, lançado pela gestão de Fernando Haddad (PT) na prefeitura paulistana, criou um modelo distinto, baseado em estratégias de redução de danos, que não exigem abstinência para prover cuidados, e no tratamento dos dependentes no território, sem isolamento.
Quem aderia ao programa prestava serviços de zeladoria pública, pelos quais recebia R$ 15 por dia e abrigo nos hotéis da região.
No ano seguinte, uma megaoperação policial dissipou o fluxo e criou uma série de pequenas cracolândias na região central e além. Reportagem da Folha mapeou 30 minicracolândias na cidade.
Em 2017, já na gestão do prefeito João Doria (PSDB), outra operação do mesmo porte, colocou 900 policiais civis na região. “Prenderam meia dúzia de traficantes. E Doria disse que tinha acabado com a cracolândia”, ironiza o promotor Pinto Filho.
Comis lembra que o novo prefeito proibiu agentes de saúde e de assistência social de penetrarem no fluxo. “A retirada do serviço tornou o ambiente ainda mais hostil”, aponta ela.
Na época, o Datafolha apontou que 59% dos paulistanos aprovavam a operação, mas a maioria absoluta tinha consciência das limitações de seus resultados: 91% concordavam que os usuários buscariam drogas em outros locais.
Cenário atual De lá para cá, a situação parece ter apenas se agravado. A crise econômica e o aumento do desemprego, acentuados na pandemia, fizeram aumentar a densidade do fluxo.
Usuários se mudaram para a praça Princesa Isabel, num movimento orquestrado, típico dos mandos do crime organizado. Barracas e tendas tomaram o entorno da enorme estátua de Duque de Caxias.
As mais recentes operações policiais têm tudo para repetir a história de sempre, seja do ponto de vista da truculência, seja do ponto de vista da desarticulação com outras políticas sociais e urbanísticas, em mais um capítulo do eterno retorno.
Pesquisa Datafolha realizada em abril deste ano aponta que 66% dos paulistanos concordam tanto com a afirmação de que “a situação dos usuário de crack é um problema de saúde pública” quanto com aquela que diz ser “um problema de segurança pública”.
“É impossível acabar com a cracolândia apenas com a polícia”, diz Comis, do É de Lei. “A maior parte das pessoas que estão lá não é criminosa, e o problema do uso de substâncias psicoativas é do campo da saúde pública.”
Para ela, uma abordagem mais eficiente é a que cria “espaços de convivência de baixa exigência para pessoas mais vulnerabilizadas poderem se vincular às políticas públicas existentes, e faz maior investimento em programas de moradia, trabalho, renda e tratamento”.
Nabil Bonduki aponta para a necessidade de incluir projetos de habitação social nessa trama de políticas sociais.
“O aumento de moradores gera mais comércio e um outro ambiente. É o melhor caminho para enfrentar a reabilitação social e urbanística que aquela região tanto precisa.”
Fonte: Folha Press